A sentença não menciona estupro culposo…. E daí?

A sentença não menciona estupro culposo…. E daí?

O noticiário foi tomado este semana pela revolta popular com o caso Mariana Ferrer, da mesma forma que parte da comunidade jurídica se incomodou com a forma que a mídia usou termos do direito de forma incorreta. A sentença não menciona estupro culposo…. E daí?

Pretendo esclarecer a questão jurídica desse caso e dar minha opinião sobre toda a polêmica. Vamos começar do começo.

O que de fato constou na sentença

Quando foi prolatada, algumas pessoas não entenderam a absolvição do acusado. Com a divulgação da íntegra da sentença (embora o caso tramite sob segredo de justiça) podemos verificar os fundamentos da decisão.

No caso,  André de Camargo Aranha foi acusado pela possível prática do crime de estupro de vulnerável descrito pelo art. 217, §1º do Código Penal (ter relação sexual com quem, por qualquer motivo, não puder oferecer resistência).

De acordo com a sentença, não há dúvidas quanto ao ato sexual entre o acusado e a vítima. Os exames encontraram sangue e sêmen do acusado.

Contudo, para o juiz, pelo conjunto de provas produzidas no processo não era possível afirmar que a vítima se encontrava em estado de vulnerabilidade, ou seja, que não era capaz de resistir ou discernir o que aconteceu.

Os exames toxicológicos e de alcoolemia não apontaram a presença de substâncias capazes de alterar o nível de consciência da vítima. Além disso, filmagens dos locais não apontaram confusão ou desorientação da vítima após o fato.

Apesar do peso que o depoimento da vítima deva ter em casos de violação da liberdade sexual, bem como notícias de que a vítima parecia confusa em conversas com amigos e familiares, o magistrado responsável pelo caso concluiu que não havia provas contundentes para afirmar que a vítima estava em estado de vulnerabilidade.

Assim, o acusado foi absolvido por ausência de provas.

Não me cabe aqui fazer juízo de valor quanto ao acerto da sentença na valoração das provas. Ninguém deve comentar um caso sem conhecer o processo. Tomando como verdade o que consta na sentença, de fato não havia provas suficientes para a condenação. Nesse caso a absolvição é correta.

Mas o que incomodou tanto a comunidade jurídica? Devemos analisar a reportagem estopim da polêmica, mas não nos limitarmos à pura discussão técnica do caso.

A veiculação da absolvição por não existir estupro culposo

A reportagem divulgada pelo Intercept, além mostrar a dinâmica de parte da audiência de instrução do caso, informou que:

“[s]egundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar – ou seja, uma espécie de ‘estupro culposo’. O juiz aceitou a argumentação”

O caso já repercute a muito tempo na sociedade, com vários capítulos duvidosos e que dividem opiniões. Seja a troca de autoridades envolvidas nas investigações, seja com a suspensão das redes sociais da vítima, que divulgava informações sobre o processo.

Após essa reportagem ser divulgada houve uma imensa onda de revolta e de indignação tanto de pessoas leigas quanto de operadores do direito, principalmente pela forma como a vítima foi tratada na audiência e pela tese do “estupro culposo”.

Na sequência, alguns operadores do direito começaram a entender como exagerada essa onda em razão da incorreção técnica da reportagem do Intercept. Nas redes sociais não é difícil encontrar manifestações perguntando se as pessoas de fato leram a sentença prolatada, ou se alguma tese de estupro culposo foi acolhida, desqualificando a indignação popular com o caso.

Pois bem, quero direcionar essa questão.

Definindo o que aconteceu

Sendo objetivo, a sentença proferida pelo juiz absolveu o acusado pela inexistência de estupro culposo na nossa lei? Não.

A manifestação do Ministério Público foi que o acusado cometeu estupro culposo, mas como este tipo penal não é previsto ele deveria ser absolvido? Não.

O Intercept divulgou informações incorretas do ponto de vista jurídico? Sim.

Conforme dito acima, tanto o MP quanto o juiz consideraram ausentes provas capazes de definir o tipo penal, não era possível comprovar que a vítima estava com o estado de consciência alterado. Em nenhum momento a intenção do agente da ação foi decisiva para a sentença proferida.

Dito isso, a indignação com o caso se justifica? Com certeza.

Por que a discussão sobre o termo “estupro culposo” deveria ser secundária

Na época da faculdade, quando a reitoria da USP foi ocupada por alunos que protestavam contra atos do então reitor em 2011, vi uma análise que me marcou até hoje. Ela precisa ser relembrada em momentos de polarização e fechamento de diálogos.

Não devemos ter um pensamento binário (aquela linguagem de computador que utiliza apenas os símbolos 0 e 1 para descrever comandos). Não podemos, e os operadores do direito em especial, nos apegarmos a discussões teóricas sem entender a dinâmica das relações e o que ela representa.

Realmente, o Intercept inventou um termo que não foi diretamente utilizado no processo. Claro que é possível a crítica e a correção técnica das informações incorretamente utilizadas. A ciência jurídica necessita dessa dogmática.

Porém essa correção não pode vir com soberba ou deboche, nem mesmo ignorar o motivo principal da revolta da população com o caso.

Em primeiro lugar, as imagens da audiência demonstram que a vítima foi humilhada em plena sessão de instrução da Justiça. A forma como o advogado do acusado mostrou fotos que em nada elucidavam os fatos descritos no processo e como disse que a vítima “vivia disso” devem ser veementemente repudiadas.

Querer colocar em dúvida a moral ou vida particular da vítima nada mais é do que a reprodução da chamada cultura do estupro. A divulgação de fotos em redes sociais particulares, independentemente das roupas mostradas, mostrariam que a vítima é culpada pelo estupro? Claro que não. Isso não tem qualquer relação com o processo.

Em segundo lugar, a omissão das autoridades presentes também deve ser atacada, inclusive pela população dita “leiga”, já que o devido processo legal exige o respeito a todos os envolvidos para legitimar a decisão judicial.

O promotor poderia, e o juiz deveria intervir para garantir o respeito à dignidade da vítima. Não é leviana a percepção de que essas autoridades “concordaram” com o discurso machista e misógino da defesa.

Nesse ponto recomendo aos colegas juristas que não querem abandonar a técnica a leitura da coluna de hoje de Lenio Streck, sobre a possibilidade de anulação do processo desde a dita audiência em razão de possível suspeição do juiz.

O perigo da tese de estupro culposo

Por último, a tese que levou à criação do termo “estupro culposo” deve ser sim considerada e analisada com extremo cuidado.

O que realmente foi aventado pela defesa e pelo Ministério Público foi a possibilidade de o agente incorrer em erro de tipo. O que seria isso?

Pelo artigo 20 do Código Penal seria o erro ou não percepção de elemento constitutivo do tipo penal. Ou seja, um elemento descrito pela norma que define o crime está presente, mas o autor da ação não percebe, ou não teria como perceber isso.

Aplicado ao caso, seria a hipótese na qual a vítima estivesse sob efeito de alguma substância que a deixasse em estado de vulnerabilidade (sob efeito de drogas ou álcool), mas o acusado “não percebesse”.

A consequência jurídica do erro de tipo é a exclusão do dolo, sendo possível a punição na modalidade culposa caso prevista em lei (olha só, o tal estupro culposo não foi totalmente inventado afinal).

Embora esteja aberto para discussões, não imagino a viabilidade fática de existir erro de tipo no estupro de vulnerável adulto. De que forma alguém mantém relações sexuais com outra sem saber se ela está em condições de consentir ou resistir a este ato. Como poderia existir estupro “por acidente”, “sem querer”, “sem saber que o outro não queria”.

A meu ver, a coroação dessa tese na jurisprudência seria um novo reforço da cultura do estupro no Judiciário, sendo mais uma desculpa para a impunidade de crimes sexuais.

Assim, a sentença não menciona estupro culposo…. E daí? A indignação com os abusos e a culpabilização da vítima mulher nesse caso vão muito além da divulgação de termo jurídico incorreto.

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